06/03/2011

O pescador de leitores

Postado em 6.3.11  | No marcador  Expressão


Por  Galeno Amorim 

O dia ainda não amanheceu. Mas Seu Joaquim, experiente com as rédeas, manobra com destreza até estacionar a velha carroça na frente da casa. E sem fazer ruído, que barulho, como ensinou o poeta, de nada resolve...

Às cinco em ponto tem início o ritual de sempre, que há anos se repete com fervor quase religioso. O dono da casa, ainda sonolento, logo aparece. Em vez de ralhar, ajuda o bom homem, que ajeita os sete caixotes e as duas estantes no carrinho de tração animal.

Em minutos, eles tomam o rumo do estádio do glorioso Pirapora Futebol Clube. Passam solenemente por ele, mas não param. Pouco depois a corrida chega ao seu final. O carro para, sem nenhum pudor, no meio da via pública. Homens e mulheres montam ali, ruidosamente, as suas barracas.

É praticamente uma operação de guerra. Sobre as bancas, eles ajeitam, cuidadosamente, as dúzias de laranjas. E os tomates e as verduras colhidas de véspera. Só então a misteriosa carga é, enfim, descarregada. Mas tudo com muito cuidado.

Léo do Peixe está radiante. Saca duas notas de dez reais do bolso e paga pelo carreto. Domingo é dia de feira livre! Durante a semana, Leonardo da Piedade Diniz Filho, pescador profissional, comercializa o resultado do seu trabalho na própria casa. E nos finais de semana, ele faz a feira.

Chova ou faça sol, a freguesia certa sempre aparece pra comprar os peixes que, há duas décadas, ele tira das águas do Velho Chico, no Norte de Minas. Quase em frente à barraca dele, fica a banca da mulher, que vende roupinhas de crianças.

Quando as caixas são, finalmente, abertas, vem a surpresa: ali nada é perecível. Mas, afinal, o que há lá dentro?! Livros! São livros à mão-cheia, que nas horas seguintes serão emprestados, de graça, para quem aparecer por ali com vontade e disposição para ler.

Quando o dia finalmente clareia, perto de uma centena de leitores se aglomera diante da inusitada barraca da feira. Em vez de embrulhos com batatas e bananas, o que eles enfiam na sacola é uma outra categoria de alimento - sim, um alimento para a alma.

Lobato, Machado, Eça, Coelho... Não importam os nomes: muitos vão lá pelo simples prazer de acariciar as obras. Uns leem por lá mesmo; outros, levam para casa, e só devolvem no domingo seguinte.

É assim, sem qualquer burocracia, que funciona, nos finais de semana, o Clube de Leitura de Pirapora, no Alto do Rio São Francisco. Simples assim!

Tudo começou por uma razão puramente pessoal: o medo que Léo do Peixe tinha de que os filhos pudessem não se interessar pelos livros, já que o pai - este sim, um leitor ávido e apaixonado pela literatura - quase não parava em casa, por causa da rotina de trabalho puxada.

Os primeiros leitores foram os próprios filhos. Mas logo apareceram os filhos dos outros feirantes e, hoje em dia, passam de 400 os sócios do clube. Muitos vão à feira só pelo prazer dos livros. Léo até precisou recrutar ajudantes pra dar conta do novo trabalho.

Mas vale a pena, ele diz. E tanto que resolveu repetir a experiência em outros cantos da cidade. Como a biblioteca pública local não abre nos finais de semana, o sucesso não tardou. Quando perguntam por que ele faz isso, o pescador de leitores tem a resposta na ponta da língua:

- É que quem não lê acaba virando cidadão de segunda classe...


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